O
que é vocação. É um termo derivado do verbo latino
“ vocare” que significa “chamar”. É uma inclinação, uma tendência ou habilidade
que leva o indivíduo a exercer uma carreira ou profissão. Mas na dimensão espiritual,
vocação é um chamado de Deus para a prática religiosa, e uma livre resposta a
esse chamado. Todos os homens e mulheres nascem marcados pelo chamado de Deus.
Ele chama a todos, mesmo que só alguns desenvolvam essa tendência ao seu
serviço. O profeta Jeremias (Jr 1, 4-5)afirma que antes de ser gerado no seio
de sua mãe, o Senhor já o conhecia; antes mesmo de nascer já estava consagrado
e destinado a ser profeta das nações.
Temos muitas dificuldades de assimilar esse chamado, são muitos os empecilhos.
Se faz necessário passar por um processo gradativo, e até de certa forma
dolorosa, de amadurecimento para entender com lucidez o chamado de Deus, e
assim colocar-se a serviço. Jeremias teve essa dificuldade, situação própria do ser humano, independente da época
em que se vive. “Ah! Senhor Deus, não sei falar, sou uma criança”( Jr 1,6). No
processo de amadurecimento, para
entender o chamado, construímos nossas desculpas, nos deparamos com nossos
medos, nos damos conta das nossas limitações e inabilidades. Faz parte da caminhada
reconhecermos nossa incapacidade. Mas o Senhor, nos dá o vigor, combustível
para desenvolver e amadurecer a vocação. Ele toca a nossa boca para
proclamarmos sua palavra.
1-TESTEMUNHAS
DA VOCAÇÃO
Ao longo da historia
da salvação, encontramos nos livros sagrados, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, personagens que deixaram na história exemplo de prontidão e
fidelidade ao chamado de Deus. Na sua época, enfrentaram muitos desafios que são tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes
aos de hoje. Admiramos neles sua capacidade de escutar, sua coragem,
persistência e lealdade ao chamado. Mas nós iremos destacar aqui apenas alguns que nos ajudaram muito a entender e abraçar
nossa vocação.
1.1-Abraão.
É
o grande modelo de fé e de serviço a Deus. Deus o chama (Gn 12, 1-3) e o envia
para dar origem a um grande e numeroso
povo. Por conta da fé na bênção do
Senhor, Abraão saiu de sua terra para uma outra terra que Deus iria lhe mostrar.
Sair sempre foi um grande obstáculo. É um dos principais segredos da missão:
sair, partir. Não é fácil sair, porque isso exige renúncia, e sem renúncia não
existe seguimento e nem missão. É mais fácil ficar. Ficar no aconchego da
família, perto dos parentes e amigos, administrando suas posses; é muito mais
cômodo. Quem não quer uma vidinha assim?
Abraão é obediente e parte com sua família à procura do desconhecido,
iluminado pela chama da fé. É por isso que Abraão é chamado o pai da fé. É o
grande modelo do verdadeiro missionário. É o pai das grandes religiões chamadas
abraânicas: Islamismo, Judaísmo e Cristianismo. Conforme o Catecismo da Igreja Católica,
“a preparação longínqua da reunião do
povo de Deus começa com a vocação de
Abraão, a quem é prometido que será o
pai de um grande povo.
1.2-Samuel
– Outro importante personagem bíblico que nos dá um belo testemunho de vocação
e fidelidade ao chamado de Deus é Samuel. Era filho de Ana e Elcana. Sua mãe
era estéril, sendo por isso humilhada. Pediu um filho ao Senhor e fez um voto que o consagraria ao
Senhor por todos os dias de sua vida. ( 1 Sm 1,11). Após o seu Nascimento, sua
mãe o levou ao templo e o entregou ao Senhor, conforme prometeu. Samuel foi
chamado por Deus ainda menino. Um dia, estando deitado, o Senhor o chamou e ele
respondeu: “Eis-me aqui”. Como ele ainda não conhecia o Senhor, procurou por
Eli pensando ser ele quem o chamava. Na terceira vez que o chamado se repetiu,
Eli lhe disse: “vai, deitar-te e se outra vez o Senhor te chamar, diga:”fala,
Senhor, que teu servo escuta”. Assim começou
a desenvolver a vocação de Samuel. Fala, Senhor, que teu servo escuta. Uma das
primeiras atitudes do missionário é a escuta. Todos aqueles que foram
chamados tiveram a atitude humilde de escutar. Mesmo em meio
ao barulho ensurdecedor que nos incomoda no tempo atual, principalmente nas
grandes cidades, é necessário parar para escutar o que o Senhor nos diz.
Somente é capaz de assumir a missão, quem escuta a voz do Senhor. O menino
Samuel escutou, assimilou o chamado, cresceu diante do Senhor e se tornou uma
grande liderança do povo de Deus.
1.3-Maria
de Nazaré
Segundo o apóstolo
Paulo (Gl 4,4), “quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu filho,
nascido de mulher, nascido sujeito à lei”. Maria foi escolhida por Deus desde
toda a eternidade, para ser a mãe de seu
filho. Uma jovem judia, de Nazaré da Galileia, prometida em casamento a um
varão chamado José, da casa de Davi, e o
nome da virgem era Maria (Lc 1,26-27). Uma
adolescente humilde e anônima. Maria encontrou graça diante de Deus. A sua época, assim como em algumas
culturas hoje, foi muito hostil com as mulheres. Elas não tinham direito à voz
e a nenhuma decisão na comunidade. Não tinham nenhuma importância política. Dedicavam-se
apenas aos serviços caseiros e aos esposos. Em caso de desobediência às leis, em alguns aspectos, os castigos lhes
eram mais pesados, como no caso da formicação e do adultério. Maria
enfrentou toda essa situação com muita
coragem. Quando o anjo Gabriel lhe comunicou que seria mãe, ela preferiu
escutar a voz de Deus e colocar-se a serviço, mesmo sabendo que uma moça
prometida em casamento aparecesse grávida, poderia ser apedrejada. José, seu
noivo, poderia denunciá-la, ela poderia ser abandonada por toda a sua família.
Mesmo correndo esse risco, Maria preferiu colocar toda a sua vida nas mãos do
Senhor, porque para Deus, tudo é possível. Assim como Abraão e Samuel, Maria
escutou a voz do Senhor e dispôs-se a servi-lo. Ela não se apresenta como
escrava, pois Deus é contra todo tipo de escravidão, mas como serva livre e
consciente. Seu sim não foi forçado,
mas lúcido e livre. Não limitou-se em
apenas ser mãe, uma das mais singelas atividades humanas, mas permitiu-se
amadurecer e penetrar profundamente no ministério de Deus e da missão do seu filho, tornando-se também discípula,
primeira cristã, primeira missionária. Aprendamos com Maria a dizer sempre sim.
2-Jesus
de Nazaré. É a nossa maior referência, é a maior testemunha
da verdadeira vocação, da obediência ao Pai e do amor à humanidade.
2.1-
A terra de Jesus
No povoado de Nazaré,
Jesus era chamado “Jesus, Filho de José” (Lc 4,22), ou” Filho de Maria (Mc
6,3). Nos outros lugares era chamado “Jesus de Nazaré” (Mt 21,11; Jo1,45-46),
ou simplesmente “ Nazareno” ( Mt 2,3; Mc 1,24). Jesus é palavra hebraica que
significa: “ Deus salva”. Nazaré era um pequeno povoado situado nas encostas
dos morros. Sua população era de aproximadamente 400 pessoas. Ficava a uns 40
km do lago da Galileia. Era um lugar totalmente desconhecido na história do
povo hebreu. Não tinha nenhuma tradição
cultural, econômica e política. Seus moradores viviam basicamente da
agricultura, tecelagem e criação de animais de pequeno porte. Seus moradores
eram muito pobres e, além disso, ainda eram explorados. As elites das cidades
maiores desprezavam as populações rurais. “de Nazaré pode sair alguma coisa boa?”
(Jo 1,46). Os moradores do campo trabalhavam para sustentar o povo das cidades.
Jesus cresceu observando toda essa situação de sofrimento e de luta. Ele mesmo
sofreu privações básicas, trabalhou duramente para ajudar na sobrevivência da
família e conheceu na prática, o sofrimento da população pobre. Além disso,
observava também a situação dolorosa das mulheres, principais vítimas do
machismo. A mulher não podia tomar parte da vida social da aldeia. Suas
obrigações eram bem claras: satisfazer os desejos sexuais do esposo, servi-lo
fielmente (como lavar o rosto e os pés dele), moer o trigo, assar o pão,
cozinhar, tecer, consertar roupas e objetos da casa. Jesus tinha um olhar de
compaixão para as mulheres, crianças (que também sofriam muito na época) e
todos os tipos de excluídos. Preferiu ficar sem esposa e filhos por amor à
humanidade. Com certeza não foi bem compreendido por fazer essa opção, pois na
cultura judaica era comum o rapaz se casar a partir dos 20 anos de idade.
Certamente foi chamado de “eunuco”, alguém sem o impulso sexual. Era uma
palavra ofensiva. Os eunucam eram desprezados, tachados de “impotentes”.
Dizia-se até que o céu estava fechado para os eunucos; eram considerados malditos
por Deus, não podiam participar das assembléias religiosas (Dt 23,2; Lv 21,20-21).
Certamente Jesus foi desprezado por sua
opção, inclusive por parte dos seus familiares. Era muito estranho para a
cultura da época, ver um homem solteiro sem família. Casamento era “sinal de
benção”. Jesus renunciou tudo pelo Reino de Deus (Mt 19,12).
Por conhecer bastante
a realidade de sua época, Jesus era solidário com as pessoas injustamente
vencidas pelo sistema social, levando-lhes a boa notícia, a fé e a esperança. Misturava-se com os excluídos e últimos. Por isso
foi chamados de “comilão”, de “beberão”, de ‘ amigo dos pecadores”, de
“endemoninhado”, de ‘ samaritano”, de “ impuro”, nomes que expressavam
desprezo, rejeição e humilhação. Jesus enfrentou todas essas dificuldades com
resignação e coragem.
3-Seguimento
a Jesus
A prática de Jesus oferece
um grande exemplo para nós que temos, no dia a dia, a missão de cultivar a
nossa vocação: só se renuncia a um tipo de amor, se for por amor, se for por
uma causa maior. Se naquela época o
mundo apresentava “ valores” atraentes , imagine hoje, dois mil anos depois. É
fácil resistir e renunciar? Claro que não; é sempre um desafio constante. Jesus
renunciou ao abraço conjugal de uma mulher, não por medo e por falta de
afetividade, foi por uma causa maior, o Reino de Deus, onde as relações
afetivas, pessoais, sociais, econômicas e políticas, devem ter, todas elas, a
marca do mistério da Trindade, que é a marca da gratuidade, da doação desinteressada,
do serviço, da solidariedade e da alegria profunda que tem sua origem em Deus.
Não casando, Jesus queria revelar a beleza dessas relações. Ele resumiu toda a
sua prática e ensinamentos, no mandamento do amor (Jo 13,34-35).
Assim como Jesus
escolheu os 12, também nos escolhe. A vocação não consiste apenas no chamado. O
Senhor chama, capacita e envia. Não escolheu ninguém muito preparado e letrado.
Quase todos os apóstolos eram de origem humilde e sem uma boa graduação. Conviveram com Jesus cerca de três
anos. Foi o tempo necessário de preparação, embora tivessem muitas dificuldades,
como, dúvidas quanto à messianidade de
Jesus, falta de fé, disputas internas entre eles e medo. Nós também não fomos
escolhidos sob os critérios humanos e escolares, mas de acordo com o coração de
Jesus, conforme a nossa capacidade de administrar os talentos recebidos.
Somente após uma experiência profunda, pessoal e comunitária com a pessoa de
Jesus, seremos capazes de tocar pra frente a sua obra. No processo de
caminhada, de amadurecimento e de descobertas, nos deparamos com inúmeros desafios, que antes de serem
meramente obstáculos, são elementos integrantes do processo de amadurecimento
da vocação. Temos que nos amadurecer para assumirmos a missão de Jesus e nos deixar lapidar por
ele para que tenhamos um coração
semelhante ao dele, capaz de amar perdoar e sentir; de viver uma
renúncia constante, sem no entanto fugir do mundo; de ter um olhar profundo
para a realidade que nos cerca; um olhar ecológico para o planeta-mãe, nossa
casa, tão agredido pela ganância humana; ter a coragem de nos aproximar da
pessoa necessitada, não só de recursos financeiros, mas igualmente necessitada
de atenção, compreensão, de amor e de carinho, ter compaixão e ajudá-la. Foi
isso o que fez Jesus de Nazaré, e é isso o que devemos fazer, como verdadeiros
discípulos missionários, e dizer sempre ao Senhor: “Fala, Senhor, que teu servo
escuta”, como fez Samuel, ou como disse Maria: “Eis-me aqui, realize-se em mim,
a tua palavra”.
Pe. Izaías